Pelos caminhos redescobertos do coração.
Um dia de sensações. Muitas sensações. Alegria, tristeza, lembranças do passado, descobertas e satisfações. Assim foi meu dia na Zona Norte. Passei o dia no lugar onde cresci e vivi. Revisitei amigos, descobri novos lugares e conheci algumas pessoas. Isso faz bem. É um retorno às raízes, e isso é uma situação que sempre faz bem. Principalmente em momentos turbulentos. Momentos em que parece tudo perdido, tudo sem rumo, tudo sem o desejo e a vivacidade de continuar a jornada.
Depois de passar algumas horas com amigos de longa data falando sobre a vida, eis que surge uma oportunidade de desfrutar algumas horas num lugar onde passei boa parte da infância e da adolescência: a Serra da Cantareira. Um amigo surge e faz o convite: “Ei! Vamos numa festa junina na Serra?”. Eu não queria ir, de verdade. Tinha que voltar para minha casa, talvez para contemplar minha tristeza. Não estava disposto para conhecer lugar algum e conhecer pessoas. Porem, com muita insistência, aceito ao convite e embarco nesse programa. Afinal de contas era uma festa na Serra. No fundo queria estar ali novamente, pois eu sabia que de alguma maneira me faria bem. E fez.
Embarcamos no automóvel e fomos em direção a Serra pela Avenida Sezefredo Fagundes. Imaginei que iríamos a algum lugar do meu passado. Algo que retomasse minhas memórias. Mas fui surpreendido. Num determinado lugar da avenida o carro entra numa estrada de terra que não tinha ainda conhecido. A estrada de Santa Maria. É um lugar de muitas historias. É onde fica a fazenda dos Alcântara Machado. É um lugar onde o passado permaneceu estático. Um lugar onde diversas famílias portuguesas e italianas preservam os costumes e tradições. Parecia que eu estava adentrando num espaço ainda não descoberto de meu coração.
Estacionamos o carro num ponto da estrada de terra e seguimos o trajeto a pé até as dependências da Fazenda Santa Maria. Decidi entrar de mente e coração abertos. Iria ser o antropólogo de minha própria vida. Observo a casa e me apaixono a primeira vista. Cumprimento os donos e a família e começo a observar a casa e seus detalhes. Casa rústica dos tempos do Brasil Império. Portas e janelas de madeira maciça, largas e altas. Um fogão a lenha, e muitos cachorros pela propriedade. Isso sem contar com as maravilhosas pessoas que conheci. Gente simples, que se autodenominavam “caipiras”. Sempre receptivas e que tinham muita sabedoria de vida que nenhuma faculdade neste mundo possa oferecer. Fiquei encantado.
O pessoal da fazenda tinha feito uma grande fogueira para a comemoração da festa junina. Meu Deus! Quanto tempo não via uma fogueira! Tinha muita coisa gostosa naquela festa. Coisas que estão em qualquer festa junina, como quentão, vinho quente, comida e por aí vai. Era proibido estar na festa sem estar segurando alguma coisa: uma lata de cerveja, um doce, uma comida. A família proprietária da fazenda, num gesto de receptividade, sempre perguntava se estávamos bem. Outras pessoas de sítios vizinhos apareceram. Todos muito educados e dispostos a engatar uma conversa. Sempre tinha uma conversa para iniciar.
Fiquei observando a fogueira que ainda não estava acessa. Meu amigo chega e faz um convite: “Ei Stoner! Venha aqui. Quero lhe mostrar algo.” Segui meu amigo por alguns passos e chegamos a Casa Grande da Fazenda. A casa pertencia a um dos donos da fazenda. Estava deteriorada. A casa tinha salas de tamanho médio, uma capela e uma grande área livre. Porem o que chamou a atenção foi a senzala. Lugar obscuro que guardava ainda muitos ares de sofrimento dos escravos. Questionei para mim mesmo que este lugar tinha que ser preservado. Era preciso mostrar para as gerações futuras as atrocidades cometidas pelos donos de escravos. O lugar estava ali. E as famílias que moram na região querem preservar também. É de uma importância sem igual que lugares como a Fazenda Santa Maria continue a contar historias.
A fogueira acende e ficávamos contemplando a beleza daquele momento. Muitas pessoas viam ao nosso encontro para conversar. Estavam curiosos. Afinal de contas tinham professores na festa e isso para eles era de uma riqueza sem igual. Éramos valorizados. Demonstravam respeito, perguntavam coisas, e colocavam a nossa disposição toda a sabedoria de vida e daquele lugar. Conversa que fluía e apontava para diversas sínteses. Ouvia atentamente as historias de cinqüenta, sessenta, setenta anos atrás. Historias da Casa Grande, de ex-escravos que permaneceram na região, da vida, do Homem, do sistema. Uma coisa me chamou muita atenção: O orgulho das pessoas perante suas profissões. Os “caipiras” sempre se desculpavam para nós por não terem realizado uma faculdade. Porem, eles sentiam orgulho e se satisfaziam com o trabalho que eles tinham. Não havia ali nenhum tipo de arrependimento. Eles são os verdadeiros “doutores” da vida.
Depois de muitas conversas, muita bebida e com a fogueira já em brasa, era hora de ir embora daquele mundo encantado. A “italianada” ainda dançava ao som de rock and roll dos anos cinqüenta na sala. Foi uma cena fantástica. Crianças e velhos dançando ao som de Rock Around The Clock de Bill Haley! Nunca mais esqueço essa cena. A “italianada” falando alto, com muitos gestos. Típico das famílias da zona norte. Vivi muito isso. Enquanto isso a “portuguesada” comiam, bebiam e conversavam sem parar. Ninguém queria deixar a gente ir embora. O tempo nesses lugares é orgânico.
Depois de muitos abraços, beijos e convites prontamente abertos para futuras visitas, nós fomos embora. Estava em paz. Foi uma noite fantástica. Uma redescoberta de mim mesmo. Eu amo a Zona Norte.
G.Stoner